{Ninguém é herói para o seu criado de quarto}
quarta-feira, maio 25, 2011
 
Notas sobre a vizinhança I (janelas indiscretas).
Na Vila Tábéu, assim mesmo, com dois assentos - vivenda no outro lado da Rua do Poço Novo – há um piano de madeira escura, com o teclado fechado. Em cima do piano, não há um copo com veneno, como na cantilena. Há apenas um caos de retratos em molduras trabalhadas e pesadas. Vi isto debaixo de uma pálida luz de tecto. Se for realmente sincero, terei que admitir que não cheguei a ficar com a certeza de que o piano é um piano. Pode ser uma escrivaninha antiga. Acho – julgo recordar – que há também um relógio de parede, de madeira igualmente escura. Não pensava encontrar este cenário atrás das portadas brancas de PVC, habitualmente fechadas.
Atrás das portadas entreabertas surgiu esta semana, quando estava tranquilamente a fazer alguma coisa no computador, uma senhora a olhar para mim. Estava entretido e não percebi há quanto tempo estaria ali. Fingiu que estava a olhar para outro lado quando reparei e, pouco depois, devolveu as suas portadas brancas ao seu estado natural. A minha janela também é indiscreta.

Dos dois restaurantes ao pé de casa, um já frequentei e outro não penso frequentar. O senhor do primeiro já me trata como vizinho e é bastante simpático. No segundo, há sempre um senhor a fumar à porta e quando estaciono o carro na praceta ele levanta-se sempre e começa a andar na minha direcção, com ar de quem me vai dizer, assim que sair do carro, que não posso estacionar ali. Mas depois altera o seu caminho e nunca diz nada. Nem para tirar o carro, nem bom dia, nem boa tarde. Decidi que este comportamento me irrita.

Deixei, no outro dia, a chave do correio na caixa e fui embora. Quando cheguei a casa tinha a chave do correio meio enfiada na porta do apartamento. Nesse dia, mais tarde, tocou à porta a miúda brasileira que vive no andar de cima. Eu estava a arrumar a casa e apareci à porta descalço e intrigado porque não esperava ninguém. Era só para perguntar se tinha ficado com a chave. Tinha sido ela a colocá-la ali. Foi simpático.

As noites de fim-de-semana são agitadas por aqui. A minha rua é, nas madrugadas de sexta-feira e sábado, ponto de passagem de putos alcoolizados. Já me começo a habituar, além de que o meu sono é resistente a esse tipo de coisas. No entanto, há pouco tempo acordei com uma grande gritaria na rua. Gritaria, choradeira, insultos. E nem era fim-de-semana. Levantei-me e fui à janela indiscreta. Uma loira platinada e um tipo bem-apessoado com noções correctas de moda masculina. A discussão vinha de infidelidades múltiplas e, aparentemente, mútuas. Uma delas, seguramente nessa noite, e muitas outras em noites passadas. Às tantas ele disse que ela não tinha moral nenhuma para falar.
“Quem vai ao Porto para foder um gajo do Facebook é puta.” E ela perguntava se o que ele tinha feito naquela noite e em outras noites, com ela mesmo ao lado, não contava. Ele dava respostas em que a palavra puta era a que mais se ouvia. Continuaram assim pelo menos um quarto de hora. Quando um virava costas, o outro ia atrás provocar mais uns argumentos. Achei que ela tinha mais razão, mas não arranjava resposta convincente para o caso do Facebook. Não negou, não assumiu e, por mais legitimidade que tivesse, a culpa e vergonha erma evidentes. E era por aí que ele ia sempre. Depois veio uma amiga dela que disse que não era hora nem lugar para discutir. E foi essa que, em poucos segundos, ganhou a discussão.

A minha janela a noroeste dá para o terraço da casa amarela. A casa amarela tem uma aura luminosa, um ar descontraído e sofisticado de classe média muito abastada. Há coisa de um mês, houve até um fim-de-semana de festa contínua. Gente e animação. São lá dos países e são loiros. Tenho a sensação, eventualmente errada que a vida lhes é leve.
Esta manhã saí ao mesmo tempo que a vizinha da casa amarela, que me sorriu. É uma mulher nos seus quarenta e muitos cinquenta e poucos de aspecto nórdico. Por instantes pensei que pudesse já vir a sorrir, mas depois ela continuou a sorrir na minha direcção e percebi que pretendia cumprimentar-me. Então, disse-lhe bom dia. Ela acabou de concretizar o sorriso e respondeu. Bom dia. E foi.

Para onde quer que formos, teremos vizinhos. Mais vale gostar de os ter.


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